Numa altura em que comemoramos um marco histórico que simboliza a nossa liberdade enquanto Povo, vivemos uma situação sem precedente e absolutamente impensável desde que o Estado de Direito Democrático que nos orgulhamos de ter, foi estruturado após a revolução de abril de 1974. Foi em verdadeiro exercício da nossa liberdade que estipulámos as regras de que agora nos socorremos para, em nome de outros valores que também como Povo considerámos importantes, nos privarmos do nosso direito à livre circulação, do nosso precioso direito a “ir e a vir” onde quisermos, como quisermos e com quem quisermos, que encontra expresso acolhimento no art. 27º da Constituição da República Portuguesa. Perante a situação de calamidade pública provocada por uma pandemia que assolou o mundo, vimos o nosso Presidente da República fazer uso de um poder constitucionalmente estabelecido que bem gostaríamos que tivesse ficado, esse sim, confinado às paredes das faculdades onde se estudam as regras do estado de sítio e de emergência previstos no art. 19º da nossa Constituição. Fernando Pessoa no seu “Livro do Desassossego” discorre sobre a liberdade dizendo que «a liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre».
Não é desta nobre dimensão da Liberdade, de foro interno e caráter inexpugnável, que tratamos quando falamos da limitação ao direito à liberdade que pode ser imposta no âmbito de um estado de emergência. Mas importa recordar que somos um Povo que aprendeu a valorizar e defender, como absolutamente preciosa, esta expressão externa da liberdade que se reconduz ao direito de deslocação livre no espaço. Por essa razão a liberdade foi integrada no núcleo fundamental dos direitos, liberdades e garantias com tutela constitucional, beneficiando de um regime de proteção máxima, diretamente decorrente do próprio texto fundamental, estipulando o seu art. 18º, por um lado, que estes direitos são diretamente aplicáveis - sem necessidade de intermediação de quaisquer outros diplomas legais – vinculando todos, quer se tratem de entidades públicas quer se tratem de entidades privadas, singulares ou coletivas, e o art. 19º, por outro, que os órgãos de soberania não os podem suspender, salvo, precisamente, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, nas situações de absoluta exceção que se encontram previstas no mesmo 19º, em que se integra a situação de calamidade pública que vivemos. E por os nossos direitos fundamentais beneficiarem do nível máximo de proteção, a execução a conferir pelos órgãos de soberania a um estado de emergência deve estrita obediência aos princípios da necessidade e proporcionalidade, estando a sua atuação limitada ao que se revele absolutamente necessário para o restabelecimento da normalidade constitucional. No caso, entre as medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID 19 que vieram a ser adotadas, avultam as que vieram introduzir limitações à liberdade de circulação das pessoas, passando o combate à propagação da doença pela necessária restrição dos contactos entre as pessoas, veículo privilegiado de contágio, tendo vindo os Decretos sucessivamente aprovados pelo Governo a estabelecer um dever de confinamento obrigatório e um dever geral de recolhimento domiciliário, tendo o primeiro por destinatários os cidadãos que se encontrem infetados ou em situação de vigilância ativa das autoridades de saúde, e o segundo todos os cidadãos que não se encontrem nas situações legalmente previstas como legitimadoras da mobilidade. As normas estabelecidas assumem, como se impõe, caráter geral e abstrato e dirigem-se a todos os cidadãos. O seu cumprimento, porém, quando desce ao concreto e se encontra com a realidade, dita um esforço que não é igualitariamente distribuído. Podia referir-me às diferenças decorrentes dos diversos estatutos sociais e económicos, que, sem dúvida, contribuem também para que este período de exceção seja vivido de formas que se reconhecem muito distintas pelos diversos estratos da nossa população, as quais, de modo mais ou menos eficiente, com uma rede mais larga ou mais apertada de proteção, foram sendo contempladas nas diversas medidas previstas pelo Governo para a execução do estado de emergência. Há, porém, um grupo populacional particularmente vulnerável e sensível às profundas alterações das rotinas impostas pela situação que se vive. Estou a pensar nos cidadãos portadores de doença mental, por um lado, e nos seus cuidadores, por outro. Os primeiros, dependendo, naturalmente, do grau de gravidade da sua doença, terão maior dificuldade na compreensão das alterações impostas à sua rotina e limitações à sua mobilidade, podendo mesmo ver exponenciadas algumas das suas fragilidades em consequência direta ou indireta das mesmas e entrar em descompensação, e as segundas poderão ver a sua função de cuidadores assumir contornos de desafio extremo, não só ao nível psicológico, pelo desgaste inerente a quem assume tal papel 24 horas, como também económico e de organização das suas vidas. Recorde-se que uma parte expressiva dos idosos, grupo especialmente vulnerável também a esta doença, apresentando já em muitos casos limitações da sua capacidade cognitiva, mantém a capacidade de regular com uma relativa autonomia as suas vidas, com o apoio que é prestado em larga medida pelos centros de dia, que se encontram, como é sabido, atualmente encerrados. Estes idosos com frequência não têm as suas limitações legalmente supridas mediante aplicação do regime do maior acompanhado (Lei 49/2018, de 14 de agosto), pelo que a sua situação e dos seus familiares fica com facilidade excluída das medidas de apoio concebidas para fazer face à situação de exceção que vivemos. Desta forma, o papel que cabe a quem assume a responsabilidade de assegurar os cuidados a pessoas idosas com quadro inicial ou moderado de demência – a quem não basta deixar mantimentos e iludir carências de contacto e comunicação com videochamadas – ficou, em grande medida, sem cobertura nos apoios sociais criados. As perturbações que o confinamento prolongado podem gerar para a saúde mental dos cidadãos em geral, por outro lado, foram sendo lembradas, tanto pelo Estado como por inúmeras instituições de natureza privada. As linhas de apoio psicológico que foram surgindo, das quais merece particular destaque a criada pelo Governo, em Parceria com a Ordem dos Psicólogos e com a Fundação Calouste Gulbenkian, visam dar resposta a situações de angústia, ansiedade e medo e podem vir a revelar-se muito úteis no encaminhamento de situações mais agudas e a requerer respostas mais direcionadas. Importa também ter presente que, para situações limite e casos de urgência, as instituições, mesmo em estado de emergência, continuam a funcionar e devem ser, sem hesitação, acionadas, tanto os estabelecimentos de saúde a quem cabe dar respostas na área da saúde mental, como os tribunais, que podem ser chamados a estabelecer, se necessário, regimes provisórios no âmbito da Lei do Maior Acompanhado (Lei 49/2018, de 14 de agosto) dando resposta em tempo útil a necessidades de suprimento de limitações da capacidade por aplicação do regime do maior acompanhado, ou a confirmar e validar internamentos, de natureza cautelar, para fazer face a situações de perigo eminente para os próprios ou para terceiros, ou tutelar, em casos de ausência total de discernimento, por aplicação do regime do maior acompanhado, a que já aludimos, em conjugação com a Lei da Saúde Mental (Lei36/98, de 24 de julho), que regula o internamento compulsivo. Os cidadãos devem estar cientes e confiantes de que, mesmo em tempos de absoluta exceção, em que as energias e recursos se encontram canalizadas para o esforço de salvar vidas imposto pela situação de calamidade pública que atravessamos, há um núcleo essencial de funções do Estado que se mantém assegurado e com o qual podem contar, muito embora seja desejo de todos que o restabelecimento da normalidade constitucional, com a reposição da plenitude dos nossos direitos, liberdades e garantias, não tarde. Seria muito bom sinal. Juntos pela Saúde Mental de Todos Nós ManifestaMente, Sara Pina Cabral PS: Já reunimos muita informação sobre como cuidar da nossa saúde mental em tempo de pandemia, esses artigos estão disponíveis aqui. Comments are closed.
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