Se ao coração é aconselhado que se apequene e, sobretudo, que não se intrometa no labor eficiente da razão, é porque se acredita que aquilo que ele encerra é algo de perturbador, imprevisível e, no limite, pouco útil para o bem-estar. Efetivamente, a palavra ‘emoção’ deriva do étimo latino movere que pode significar mover, excitar, desorganizar, impelir, perturbar. Esta narrativa de desorganização tem permitido conceber as emoções como pedras numa engrenagem, causadoras de erros e vieses de toda a ordem.
A razão tem, assim, reinado como ideal de toda a educação e um valor social incontornável. O fetiche pela racionalidade tem permitido, contudo, algumas concessões. Nos anos 90, surge o conceito de inteligência emocional que se afirma como uma forma de raciocinar sobre as emoções e usar a emoção para facilitar o pensamento (Mayer & Salovey, 1997). Ainda que esta ideia de uma inteligência emocional tenha trazido um novo reconhecimento do valor das emoções, há uma verdade que o conceito poderá fazer esquecer: as emoções são, em si mesmas, inteligentes! A inteligência é comumente definida como uma capacidade de lidar adequada e eficazmente com os desafios do meio, aquilo que habitualmente se entende como capacidade de adaptação. Surpreendentemente – ou não tanto assim – as emoções têm exatamente o mesmo descritivo de funções. As emoções agradáveis (como a alegria) e as desagradáveis (como o medo, a zanga, a tristeza) persistem porque cumprem uma função de adaptação. O medo organiza-nos para lidar com a ameaça, a zanga insta-nos a estabelecer limites interpessoais, a tristeza oferece recursos para integrar perdas, falhas ou desapontamentos. As emoções podem servir, assim, como pequenos atalhos para o comportamento. Perante desafios comuns, oferecem soluções rápidas, semiautomáticas e tendencialmente adequadas para resolver problemas. Ao surgir de um som estrondoso e inesperado, ainda antes de poder articular o mais rudimentar pensamento (“afinal é só um trovão”), já o leitor terá sido acometido por um valente sobressalto e o coração palpita forte no seu peito. A expectativa de um perigo desencadeou, num abrir e fechar de olhos, uma resposta física que lhe permitiria lutar ou fugir com prontidão. O exemplo do medo permite compreender com facilidade a utilidade das emoções para a sobrevivência, não apenas de pessoas, mas também de animais. No entanto, a emoção não é apenas um sistema de gestão de crise. No dia-a-dia, guiam-nos na tomada de decisão e ajudam-nos a escolher rapidamente as alternativas mais vantajosas. Os estudos de António Damásio (1994/2009) com pacientes com lesões cerebrais que afetam o processamento emocional mostram-no com clareza. Uma pessoa com inteligência perfeitamente preservada, mas sem emoções, pode ser perfeitamente incapaz de funcionar em sociedade. Saber identificar tarefas prioritárias no trabalho, selecionar adequadamente relações sociais, ou ter motivação para prosseguir objetivos pessoais são tarefas essenciais a que a razão pura parece ser incapaz de responder adequadamente. De um modo geral, o que a evidência atual parece vir a demonstrar é que de cabeças frias não reza a história. A alma mais passional sem a estrutura organizadora da razão é inútil, mas a mente mais brilhante sem o ímpeto motivador da emoção é estéril. Às emoções, mais que controlá-las, devemos procurar experienciá-las na forma, na medida e no momento certos. Juntos pela Saúde Mental de Todos Nós ManifestaMente, David Guedes Fontes Damásio, A. R. (2009). O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro humano (25ª ed., D. Vicente & G. Segurado, Trad.). Publicações Europa-América. (Obra original publicada em 1994). Mayer, J. D., & Salovey, P. (1997). What is emotional intelligence? In P. Salovey & D. J. Sluyter (Eds.), Emotional development and emotional intelligence: Educational implications (pp. 3–34). Basic Books. Os comentários estão fechados.
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