Certamente que sim, os padrões de conduta social são definidos coletivamente em relação ao seu tempo e cultura; são costurados cuidadosamente para atender um conjunto de expectativas relacionadas com a necessidade de manter uma suposta ordem e controlo social.
Não se quer dizer com isto que os acordos sociais que prezam a ordem e o convívio não sejam necessários; é evidente que são a única possibilidade para a permanência de uma humanidade civilizada, entretanto nesta busca pela ordem, algumas anomalias podem ocorrer. São aquelas coisas que cruelmente exigimos uns dos outros, acabando, assim, por produzir uma sociedade adoecida. Através de acordos tácitos, determinamos coletivamente como as pessoas devem ser e agir, colonizando qualquer iniciativa de ser autêntico. Como uma espécie de manada, vamos seguindo expectativas que já não sabemos de quem são. Quando o assunto é Tratamento de Saúde Mental, isto é especialmente problemático. Quotidianamente, as pessoas que vivenciam sofrimento mental extremo chegam aos consultórios já envergonhadas, imaginando que a sua doença tenha a ver exclusivamente com elas próprias, devido a qualquer incompetência ou fracasso pessoal. Esquecem os elementos da vida coletiva que contribuem para que as pessoas adoeçam. Relações vazias, trabalhos precários, desigualdade, cidades violentas, traumas, desesperança quanto ao futuro, dificuldade em ser quem, de facto, se é. É fácil perceber que esteja ainda muito presente no discurso das pessoas, que procuram cuidados de saúde mental, uma grande preocupação quanto aos julgamentos sociais diante do seu diagnóstico. Como profissional de saúde, uma parte significativa do meu trabalho é sensibilizar as pessoas para a universalidade do sofrimento mental, como parte indissociável da condição humana. Pode dizer-se que nenhum ser humano está imune à doença mental, que está diretamente relacionada com situações de traumas e excessos experienciados ao longo da vida. É difícil aceitar que o preconceito continue a dificultar o acesso a tratamentos adequados; é urgente a necessidade de ampliarmos a consciencialização coletiva sobre o problema. Observo um aumento das discussões sobre o assunto, mas infelizmente ainda não o bastante para diminuir o preconceito e o estigma. Seguimos presos a um ideal de normalidade, já que vivemos numa sociedade extremamente adoecida, mas que não se coíbe de determinar padrões de normalidade inalcançáveis e promove processos de submissão, anulando toda a potência e criatividade que reside no que é peculiar em nós. Na minha prática clínica, desde cedo escolhi olhar além dos diagnósticos, prefiro ouvir e olhar para o sofrimento mental numa perspectiva profunda e ampliada, buscando os sentidos e contextos em que os sujeitos adoecem. Então, não sei se é bom ser normal, talvez o melhor seja ser autêntico, conhecer os próprios desejos e necessidades e, quem sabe, trilhar uma vida em que isto possa ser alcançado. Nise da Silveira, médica brasileira e reconhecida mundialmente pela sua contribuição para a psiquiatria, tendo revolucionado o tratamento mental no Brasil, costumava dizer: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas. É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.” (Nise Magalhães da Silveira) Juntos pela Saúde Mental de Todos Nós ManifestaMente, Cristiane Dodpoka Comments are closed.
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Outubro 2024
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