Ainda bem que a minha mãe morreu
Encarar um livro como uma experiência imersiva torna o livro “Ainda bem que a minha mãe morreu” uma experiência intensa, que permite aceder à mente de uma pessoa que sofre de uma perturbação do comportamento alimentar grave. Jennette McCurdy é uma ex-atriz nortamericana, tendo iniciado o seu percurso pelos palcos desde tenra idade. A autora narra a relação entre a fama e a pressão induzida pela sua própria mãe. Durante o seu crescimento, Jennette submeteu-se a inúmeros castings, avaliações, procedimentos estéticos invasivos, entre múltiplas situações traumáticas e abusivas, numa tentativa de agradar à mãe, tentando provar ser digna do seu amor. No seio de uma relação mãe-filha completamente disfuncional, Jennette desenvolve um quadro grave de anorexia nervosa do tipo restritivo, aos 11 anos, com o objetivo de conseguir mais papéis cinematográficos e de televisão – sabia que era o que faria a sua mãe feliz. Jennette descreve a relação com a mãe desde a infância até ao falecimento desta, mostrando o paralelismo entre esta relação e o agravamento clínico que vemos na jovem: após vários anos de anorexia nervosa do tipo restritivo, Jennette inicia comportamentos binge eating pesados durante anos, levando a aumento de peso fortemente censurado pela mãe da atriz. A censura constante por parte desta leva ao início de comportamentos compensatórios purgativos, com uma frequência avassaladora. Aquando da morte da mãe, a doente apresenta critérios clínicos para o diagnóstico de bulimia nervosa, iniciando consumos de álcool também inicialmente em padrão binge drinking, culminando numa perturbação de uso de álcool grave. É um livro autobiográfico, um livro de memórias, que nos mostra o impacto da fama e das relações familiares na nossa vida. Pode ser um livro doloroso de se ler, dada a forma crua como os sentimentos de culpa, desesperança, baixa autoestima são narrados. Toda a gente nesta sala um dia há-de morrer Numa narrativa repleta de humor, Gilda, a protagonista de “Toda a gente nesta sala um dia há-de morrer”, mostra-nos o que é viver com ansiedade generalizada, pautada ocasionalmente com episódios de pânico. Gilda é uma jovem com poucas competências sociais, obcecada com a morte. É uma jovem lésbica e ateia que dá por si a trabalhar numa igreja, tecendo comentários hilariantes sobre contrastes que vai observando no seu dia a dia. É um livro que aborda temas profundos, por vezes numa linha mais existencial, que assombram a personagem principal, com um sentido de humor bem conseguido. A forma como os outros veem Gilda não é a forma como nós, leitores, a vemos e isso faz-nos refletir: muitas vezes, a forma como vemos as pessoas não corresponde efetivamente ao que elas são. Não corresponde ao que pensam, aos seus sonhos e medos. À sua essência. Percebemos, ao longo do livro, o que é viver com sintomas da linha ansiosa e por vezes depressiva com impacto importante no funcionamento. Ver a procura de Gilda por cuidados de saúde é, no meu entender, algo a que ninguém ficará indiferente. Faz-nos pensar acerca da forma como são desvalorizados os sintomas de alguém com historial psiquiátrico e como podem não ser levados a sério quando a pessoa é admitida num Serviço de Urgência geral. Leva-nos a refletir em como é que, às vezes, não temos empatia nem paciência para o outro: ver isso pelos olhos de Gilda pode ser como um balde de água fria. Destransição, baby O livro” Destransição, Baby” foi escrito por Torrey Peters, a primeira mulher trans a ser nomeada para o Women’s Prize for Fiction. É um romance inteligente, acerca da vida de três mulheres, duas transgéneros e uma cisgénero, cujas vidas foram unidas por circunstâncias inusitadas. Peters refere que a maioria da literatura de ficção disponível sobre transgénero e transexualidade se baseia nas questões da transição: “os meus pais vão aceitar? Quem é que vai gostar de mim assim? Como serão as minhas relações?”, segundo a autora, questões que, as pessoas cisgénero enfrentam na adolescência, assombram as pessoas transgénero até muito mais tarde. Com este livro, Peters pretende retratar as dificuldades associadas com a transição de género na idade adulta. Transição completa: e agora? “Destransição, Baby” encara estas questões com uma outra profundidade, sendo uma delas a maternidade. Retrata, com a medida certa de sentido de humor, as dificuldades que envolvem o género e a pressão da sociedade na idade adulta, usando personagens comuns e banais como qualquer pessoa. Reese, uma mulher trans na casa dos 30, debate-se com questões sobre como encontrar um propósito de vida. Debate-se com a vontade de ser mãe, facto que sente que tem de justificar à sociedade, ao contrário de qualquer mulher cis que, inversamente, sente que tem de se justificar caso não queira ser mãe. É um livro que aborda a violência do mundo transfóbico que desgasta as pessoas trans, falando ainda sobre um tema controverso, a destransição, e os motivos que levam a que certas pessoas a vejam como única forma de sobrevivência. O livro de Torrey Peters está a singrar num mercado que, até agora, tem falhado na publicação de autores trans. As Raparigas de Papel “As Raparigas de Papel” é uma distopia, uma história feminista para adultos, que também deve ser lida por gerações mais jovens. Escrito por Louise O’Neill, “As Raparigas de Papel” conta-nos uma história sombria, em que as raparigas não nascem de forma natural. Criadas com o objetivo de proporcionar prazer aos homens, as raparigas são criadas em escolas, treinadas para agradar até que estejam preparadas para o mundo exterior. Ano após ano, recebem classificações sob a forma de números, sendo o seu valor inteiramente dependente da sua pontuação: a beleza é o seu principal objetivo. Quando terminam a formação, as raparigas têm três destinos diferentes: as que obtiverem melhor pontuação ao longo dos anos, tornam- se companheiras, e estão autorizadas a viver com um marido e a gerar filhos rapazes até que deixem de ser úteis. Os outros dois caminhos - ser professora na escola de raparigas, ou concubina - são igualmente obscuros, pelo que todas as raparigas querem ao máximo evitar esse desfecho para si próprias. Isto gera um ambiente de tensão e competitividade, em que as raparigas sentem que têm de lutar pelo futuro, mesmo à custa das suas amigas. Apesar de ser uma história fictícia distópica, é assustadoramente credível. É impossível ficar indiferente à hiperbolização e distorção dos papéis de género, levando à reflexão do papel das raparigas e das mulheres nos dias de hoje. O’Neill permite-nos ver de perto o impacto mental do body shamming, da pressão da beleza e sexualização das jovens mulheres. Mil vezes adeus John Green, autor conhecido pelos livros “A Culpa é das Estrelas” e “À procura de Alaska”, escreveu em 2017 o livro “Mil Vezes Adeus” (“Turtles all the way Down”, no original em inglês). É um livro do género literário young adult, centrado na jovem Aza Holmes, de dezassete anos. Aza, juntamente com a sua melhor amiga Daisy, investigam o enigmático desaparecimento de um bilionário que vive perto das jovens. Contudo, a verdadeira narrativa centra-se nas batalhas interiores de Aza, que tem perturbação obsessivo-compulsiva. Ao longo da história, somos engolidos pelas suas asfixiantes “espirais de pensamentos”, assim chamadas por Aza, às quais é impossível ficar indiferente. O detalhe e autenticidade com que são descritas, bem como todo o sofrimento inerente às mesmas, denuncia o próprio diagnóstico de John Green. Quando o livro foi publicado, o autor referiu em algumas entrevistas que o livro Mil Vezes Adeus pretendia retratar o sofrimento que o assombrou ao longo do seu crescimento, desde que iniciou sintomatologia obsessiva, na adolescência. Não é um livro fácil de ler, uma vez que Aza pode tornar-se uma narradora muito repetitiva. Surgem ainda frases de forma um pouco aleatória no meio de parágrafos sobre temáticas diferentes, ilustrando de forma quase perfeita o aparecimento de pensamentos intrusivos. Mil Vezes Adeus é dotado de uma precisão clínica do ponto de vista psicopatológico, mas pode tornar-se cansativo de ler para quem for apanhado desprevenido. Contudo, é isso que torna este livro impactante: sentimo-nos mesmo dentro da mente de alguém com POC, e conseguimos empatizar com todo o sofrimento associado às vivências obsessivas de Aza. Juntos pela Saúde Mental de Todos Nós ManifestaMente, Joana Pereira Romão Comments are closed.
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